Quando se instalaram nas suas margens, os gregos inventaram-se deuses. É um acontecimento sem precedentes na história conhecida da humanidade. Ainda não terminou. Hollywood recicla nos seus écrans as aventuras da raça naturalmente celeste. De todas, a única história infinita é a de Ulisses. Por sua causa, o Mediterrâneo tornou-se um mar diferente, o único que é finito e sem fim. Ao contrário dos argonautas, Ulisses não busca nenhum velo de ouro. Navega apenas para regressar a um porto que conhece e o conhece. O que não pode encontrar sem descobrir, errando entre monstros e sereias, a forma do seu rosto. Entre o mundo exangue dos mortos e o paraíso do sonho do esquecimento deve encontrar a passagem estreita para aquela ilha onde será de novo o rei de si mesmo. Não apenas um herói que os deuses perdoaram, mas um deus, um homem cansado pela sua audácia olhando o sol de frente sem morrer.
Durante milhares de anos o Mediterrâneo foi o palco da ópera humana que por comodidade chamamos história. Não se exclui que o não continue sendo.
Todos os heróis do Ocidente cruzaram as suas margens tão familiares como fantasmas desfeitos na sua luz excessiva, agora de tão branca. Heróis a sério e da imaginação, uns alimentando a outra. Nenhum iguala Ulisses, o herói do mistério claro como um templo grego devorado pela luz onde as suas colunas se recortam. O que os outros buscam, ouro, glória, inteligência, é o que ele deve perder para ser quem é: pura errância no mar mais conhecido e, de súbito, oculto, enigmático na sua circularidade divina de labirinto sem saída. O que Ulisses inventou foi a primeira viagem no tempo onde ninguém viaja para sítio algum que não seja um regresso. Assumido e aceite como um nascimento.
Eduardo Lourenço, Revista Atlântica de História Ibero-americana nº 03. Portimão: ICIA, 2005 e Meridional. Revista de Estudos do Mediterrâneo nº 1. Portimão-Loulé: ICIA-Sul, Sol e Sal, 2021.